Por Vera Lucia C. F de Oliveira e Glaucio Aranha

“Literacia Familiar é o conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem oral, a leitura e a escrita, que as crianças vivenciam com seus pais ou responsáveis. É interagir, conversar e ler em voz alta com os filhos. É estimulá-los a desenvolver, por meio de estratégias simples e divertidas, quatro habilidades fundamentais: ouvir, falar, ler e escrever!” (http://alfabetizacao.mec.gov.br/contapramim)

No ano de 2020, ao redor de todo o mundo, foi necessário o empenho de inumeráveis professores no sentido de aprender o uso de novas tecnologias com o fim de adequação de sua prática ao cenário pandêmico que assolou o globo e impactou significatimante sobre o sistema educacional. Em contrapartida, se para os docentes houve tal desafio, para os pais houve igualmente a necessidade de busca por meios não usuais de mitigar as necessidades educacionais dos filhos em face do isolamento social em casa, sem que pudessem contar agora com o auxílio físico de um professor ou da escola. Neste contexto, o know-how dos pais multiplicou as expectativas da “sobrevivência escolar”. O desafio foi enorme para ambas as partes. Embora muitos docentes tivessem o domínio da tecnologia através de alguns recursos já existentes, mesmo que pouco usados, em sua maioria tiveram que ser apresentados às novas plataformas digitais por onde o ensino fluiria.

A literacia familiar, ou seja, a participação ativa dos responsáveis no processo de alfabetização da criança ganhou neste cenário pandêmico uma proporção de destaque. Há muito já se sabe que o desenvolvimento linguístico das crianças é influenciado também pelo ambiente familiar, sobretudo durante a primeira infância (0 a 6 anos de idade). Trata-se de um momento decisivo para o futuro escolar das crianças. Entretanto, durante a epidemia, o espaço da família sofreu uma transformação para incluir nele as práticas e usos pertinentes ao espaço da escola, demandando das famílias um reposicionamento radical em relação à participação na educação das crianças.

Assim, o processo de inclusão da família no processo formador da alfabetização da criança transformou o cotidiano familiar. Nesta configuração, o apoio familiar é percebido como um componente sociocognitivo importante para o enriquecimento do ambiente de aprendizagem. Estudos revelam, por exemplo, que o número de palavras que comporá o repertório lexical de uma criança pode ser substancialmente melhorado com a exposição dela a um ambiente linguísticamente enriquecido. Neste sentido, a leitura que os pais, parentes e cuidadores fazem para as crianças, bem como o tipo de produto audiovisual (desenhos animados, programas infantis, etc.) contribuem para o enriquecimento ou não do número de palavras que essa criança disporá.

Já foi observado (Figura 1) que crianças de famílias pertencentes a estratos sócioeconômicos mais baixos e que, por via de consequência, tem acesso mais restrito a bens de consumo, tendem a ter um repertório acumulado de palavras menor do que crianças provenientes de famílias de classe média alta, sendo possível inferir que as realidades sociais influenciam a construção do repertório linguístico. Possivelmente, as famílias mais carentes, por necessidades de ausência do lar por conta de trabalho e deslocamento, acabam não tendo condições de promover um ambiente de literacia familiar, ou seja, um ambiente em que os pais podem direta ou indiretamente viabilizar para a criança contextos de leitura, diálogo, programação audiovisual orientada, etc.

Em relação ao uso da literacia familiar, vale destacar que há muitas possibilidades de pô-la em prática. A Interação Verbal, por exemplo, pode ser realizada desde a gestação, com a leitura e conversa dirigida ao bebê, estendendo-se até o final da adolescência. Também não precisa ser realizada a partir de livros didáticos ou de ficção infantil. A narração de uma história genérica ou mesmo improvisada já é um conteúdo importante, se houver empatia entre quem narra e quem escuta. A leitura de um texto do dia a dia sendo feito com cumplicidade já é valiosa, embora materiais de apoio possam ajudar, não são um requisito. Um passeio com os pais ao supermercado pode ser transformado numa oportunidade de literacia ao apresentar à criança variadas frutas, legumes e objetos, dando-lhes os respectivos nomes e característica, por exemplo: “Esta é a melancia. Olha só como é grande. É maior que essa laranja. E olha aqui, por fora ela é verde, tem uma camada branca e dentro ela é vermelha com sementes pretas.”. Neste simples exemplos, temos uma grande quantidade de substantivos, adjetivos, advérbios que pela repetição vão sendo acumulados pela criança.

Outra prática muito boa é a Leitura Dialogada, ou seja, o adulto não apenas lê a história, mas também interage com a criança, faz perguntas, elabora a história encima das respostas, permite intervenções da criança, faz considerações. Embora se pareça com a Narração de Histórias, que é outra abordagem válida, a Leitura Dialogada se difere da Narração de Histórias porque esta não parte da leitura, mas da interpretação, com ou sem o apoio de objetos (bonecos, ilustrações, figurino, etc). Ambas, contudo, são igualmente eficazes e podem ser usadas como estratégias de diversificação de interação.

Para as crianças em processo de letramento, o Contato com a Escrita é a oportunização da inserção da criança no universo da escrita, que pode tomar variadas formas como brincar de achar letras para identificar objetos, grafias inventadas, cobrir letras pontihadas, colorir letras, brincadeiras de montagem de frases com recorte de palavras e outros.

Nas famílias em que as práticas de literacia familiar já existiam e que possuíam os recursos necessários ao ensino remoto, a adaptação à nova realidade ocorreu com relativa facilidade. Muitas vezes, obtiveram o êxito desejado por professores ou o tangenciaram com ótimos resultados. As crianças que vinham sendo criadas em lares nos quais a literacia familiar acontecia, parecem se destacar como leitores e estudantes mais bem-sucedidos. Hoje, muitos estudos estão se voltando para esse aspecto.

Possivelmente, para a realidade brasileira, que é marcada por condições socioeconômicas desfavoráveis para milhões de famílias e escolas muitas vezes carentes de recursos, a Literacia Familiar possa ser um poderoso instrumento para a promoção do letramento e para a capacitação e motivação para a leitura.

Além disso, quando estas práticas são aplicadas, elas estreitam as relações de afeto e amizade no seio familiar, pois seus integrantes passam a se comunicar mais e melhor. Isto possibilita que aprendam juntos, pois os pais que as praticam tendem a se envolver mais com a vida escolar de seus filhos: acompanhar os deveres de casa, participar de reuniões escolares e entender melhor as necessidades e dificuldades das crianças são condições primordiais para enfrentar os desafios dos últimos tempos.

Por serem as figuras mais importantes na vida das crianças, tudo o que os pais e responsáveis falam e fazem tem um peso enorme sobre elas, tanto para o bem, quanto para o mal. Por isso, o modelo dado por eles é importante para a motivação da criança, pois gera condições propícias para o desenvolvimento e aprimoramento das habilidades de ouvir, falar, ler e escrever.

Enganam-se aqueles que colocam na escola e nas poucas horas de ensino obrigatório por lei, a grande responsabilidade da transformação da vida de suas crianças. O adulto responsável, autônomo e consciente de seus compromissos começa a ser formado nos exemplos tidos em casa, sendo potencializado num lar acolhedor, onde problemas são discutidos e soluções são buscadas em conjunto, compartilhando-se sonhos, planos e desafios. O ambiente familiar deveria, assim, ser o espaço no qual dúvidas e incertezas são sanadas em conversas que conduzam ao próximo passo a ser dado pela criança rumo à conquista pessoal, sua formação educacional. A leitura e interação do adulto com o universo infantil, desde a tenra infância, colaboram e facilitam esse processo, ainda mais neste momento de ensino remoto.